segunda-feira, 14 de setembro de 2015

MANUAL DE EMER­GÊN­CIA DO OBSER­VA­DOR DE CATÁSTROFES - Paulo Brabo


A cons­pi­ra­ção contra a raça humana (2010), de Thomas Ligotti, foi recebido como o livro mais pes­si­mista de todos os tempos, tendo entre outros méritos inspirado os discursos do policial niilista da primeira temporada de True Detective. Thomas Ligotti é um escritor que me deixa otimista com relação às pos­si­bi­li­da­des da lite­ra­tura de horror; seus textos de ficção, reunidos em outros livros, são a única coisa con­tem­po­râ­nea que chegou até mim e se aproxima da vertigem que é Lovecraft.
Na qualidade de pes­si­mista, no entanto, Ligotti tem ainda muito a aprender. Comigo.
Diversas vezes tive de inter­rom­per a leitura de A cons­pi­ra­ção contra a raça humana para balançar ceri­mo­ni­al­mente a cabeça e refletir sobre o estado deplo­rá­vel do pes­si­mismo con­tem­po­râ­neo. “Então esse é o pior cenário que Ligotti consegue conceber?”, eu pensava. “A vida não faz sentido, mimimi? Púats, que amador.” A cons­pi­ra­ção é um livro curioso, mas encontro fonte mais segura de desespero e de horror naquelas contas de frases moti­va­ci­o­nais do instagram.
Como eu ia dizendo, sou o cara mais pes­si­mista que conheço. Tomando Ligotti como parâmetro, não tenho qualquer evidência de que não sou o cara mais pes­si­mista que já existiu. Como os pes­si­mis­tas genuínos (está ouvindo, Luiz Henrique), falo raramente sobre o meu pes­si­mismo – porque, natu­ral­mente, não adianta.
Se toco no assunto é porque estes são dias gloriosos para nós, obser­va­do­res de catás­tro­fes. Chegou a hora da retri­bui­ção, inclusive para nós.
É há décadas (milênios?) que pes­si­mis­tas bem infor­ma­dos (em outro tempo o ofício do pes­si­mismo era chamado de profético) vêm dizendo que a assolação estava chegando para cobrar as nossas pro­mis­só­rias e as pro­mis­só­rias que nos deixaram as gerações. Mas agora que a casa está caindo, tudo ruindo e começando tudo a carcomer, é tarefa difícil escolher para onde olhar.
Para o isento obser­va­dor de catás­tro­fes, qual cenário apo­ca­líp­tico deve ter a pre­ce­dên­cia? Devo dar con­ti­nui­dade às crônicas dos conflitos no Brasil, retomar o estado emble­má­tico da Europa ou começar a falar sobre o Estado Islâmico? Encontro quem sabe tempo para falar sobre o clima?
Século vinte, você acha que empurrar uma Guerra Mundial atrás da outra serviu para garantir a sua pre­ce­dên­cia na calçada da infâmia? A propósito, você chama aquilo de Guerra Mundial? Veja isto e aprenda.
Diante do número de per­so­na­gens e da com­ple­xi­dade dos cenários apo­ca­líp­ti­cos, mesmo o mais expe­ri­men­tado pes­si­mista pode precisar de ajuda para preencher as linhas pon­ti­lha­das e decupar os conflitos. Con­si­de­rando que este é o último espe­tá­culo da Terra, seria grave des­per­dí­cio você não saber para onde olhar. Para sua con­ve­ni­ên­cia, deito aqui um breve

Manual de emer­gên­cia do obser­va­dor de catástrofes

Crise de refu­gi­a­dos na Europa? Índios arro­cha­dos no Mato Grosso do Sul? Mercado inter­na­ci­o­nal seques­trado pela depen­dên­cia da China? Guerra no Oriente Médio entra para o Patrimô­nio da Huma­ni­dade? Crise de abas­te­ci­mento de água em São Paulo? Proposta da ONU para incluir o des­ma­ta­mento da Amazônia na lista de direitos humanos? 2015 é já o ano mais quente jamais regis­trado? Fracasso econômico da política desen­vol­vi­men­tista do PT está sendo corrigido com mais e mais acelerado desenvolvimentismo?
As veias abertas do Apo­ca­lipse são tantas e suas hemor­ra­gias tão exu­be­ran­tes que nenhuma lista será completa o bastante para guiar a atenção do obser­va­dor de catás­tro­fes. A vantagem é que, macro ou micro, a catás­trofe que o amigo pes­si­mista escolher observar estará con­ve­ni­en­te­mente submetida à mesma e didática lógica fundamental.
► 1 Você está olhando para os resul­ta­dos de uma monocultura
A história das economias locais demons­trou vez após outra que é insen­sa­tez acreditar que há esta­bi­li­dade nas mono­cul­tu­ras. Quando uma mono­cul­tura dá errado, tudo debaixo da sua esfera de influên­cia dá errado (pergunte ao ciclo da borracha, ao do café). No século 21 estamos colhendo pela primeira vez os frutos impen­sá­veis (ou, melhor dizendo, a impen­sá­vel infer­ti­li­dade) de uma mono­cul­tura global.
Em algum momento pro­ces­sual do século vinte, como resultado da invenção da ideia de país sub­de­sen­vol­vido, as culturas do globo deixaram de se acreditar sufi­ci­en­tes. Países e civi­li­za­ções inteiras tinham vivido por milênios debaixo da noção (e retro­a­ti­va­mente enten­de­mos o quanto essa noção era sub­ver­siva) de que seus modos locais de fazer e de olhar o mundo tinham legi­ti­mi­dade inerente, e vantagens inerentes sobre as soluções de outras culturas.
Todas essas pers­pec­ti­vas se deixaram esmagar pela mono­cul­tura do capi­ta­lismo global e urbano. Que o mundo inteiro esteja desejando as mesmas coisas é por si mesmo uma for­mi­dá­vel catás­trofe, mas dessa fonte bebem todas as outras.
► 2 Você está olhando para os resul­ta­dos de uma crença sem fundamento
A mes­qui­nha­ria branca foi sempre embalada por alguma sorte de crença prag­má­tica, sem qualquer cor­res­pon­dên­cia com as hesi­ta­ções e pausas da poesia. Os ingre­di­en­tes são os mesmos, mas nova é a embalagem, a ideia de promover crenças con­ve­ni­en­tes e sem fun­da­mento pelo método manhoso de chamá-las de racionais.
Os conflitos que assolam a presente iteração da Google Earth nascem das impli­ca­ções e com­pli­ca­ções de um único artigo de fé:
A crença de que os bens a que tem acesso uma minoria pri­vi­le­gi­ada podem chegar a ser possuídos pela maioria que deseja ter acesso a eles.
O obser­va­dor de catás­tro­fes vai encontrar inúmeros deleites em reler o parágrafo acima (encontrei a frase, perfeita como está, neste artigo de Pankaj Mishra ). Pode haver receita mais for­mi­dá­vel ou mais certa para o desastre? O magistral é que essa crença – de que os des­pos­suí­dos podem chegar a aquistar aquilo a que tem acesso os pri­vi­le­gi­a­dos – per­ma­ne­ce­ria sem fun­da­mento mesmo num mundo de recursos ili­mi­ta­dos, coisa que o nosso está longe de ser.
► 3 Você está olhando para os resul­ta­dos de uma evan­ge­li­za­ção universal bem sucedida
Uma boa nova não precisa ter fun­da­mento para ser pregada pelas elites e abraçada pela multidão; basta que pareça com­pa­ra­ti­va­mente boa para a maioria e se mostre de fato boa para os mais privilegiados.
A vontade de enri­que­cer foi tra­di­ci­o­nal­mente usada como com­bus­tí­vel para toda sorte de injus­ti­ças (veja-se a história da colo­ni­za­ção da África e das Américas), mas até recen­te­mente esse apelo não tinha sido arti­cu­lado em sua versão mais absur­dista. “Estamos sendo pouco ambi­ci­o­sos aqui”, disse um homem branco de gravata em alguma reunião. “Em vez de partirmos da lorota de que todos querem ficar ricos, por que não partirmos da lorota de que todos podem ficar ricos?”
Nenhuma outra pregação ou ortodoxia mostrou-se mais eficaz do que a do capi­ta­lismo/fundamentalismo de mercado, porque antes dele não tinha ocorrido a ninguém articular a singela (e dupla­mente mentirosa) ideia de que toda desi­gual­dade é justa porque ricos todos podem ficar.
A insa­tis­fa­ção das massas já foi represada com a promessa de uma eter­ni­dade de abun­dân­cia no céu; hoje em dia a mesma insa­tis­fa­ção é represada com a pos­si­bi­li­dade de momentos de riqueza na terra. Como se vê, as massas se mostram cada vez menos exigentes e mais crédulas, e a sua apa­zi­guada insa­tis­fa­ção pode ser, de maneira mais eficaz do quem em qualquer sistema anterior, cana­li­zada em favor da causa das elites.
O fun­da­men­ta­lismo de mercado é a mono­cul­tura do mundo. Por um lado, todos dentro do sistema podem ser apa­zi­gua­dos à plena submissão: Então você não quer um mundo em que qualquer um possa ficar rico, inclusive você? Sai do caminho que não é por interesse próprio, é por amor à igualdade que estou der­ru­bando essa floresta, seu comu­nis­ti­nha de merda.
Por outro, a invi­a­bi­li­dade e a popu­la­ri­dade do projeto capi­ta­lista fazem com que um enorme número de pessoas dentro do sistema conheça medidas des­fi­gu­ran­tes de frus­tra­ção pessoal. Esses decep­ci­o­na­dos com a fé podem ser facil­mente aliciados por sistemas ali­men­ta­dos pela mesma frus­tra­ção, como o Estado Islâmico (que é em muitos sentidos uma versão Apple Incor­po­ra­ted –extra focused e intei­ra­mente design-oriented – do ter­ro­rismo tradicional).
► 4 Você ainda não viu nada
Como dizia um pes­si­mista que já partiu desta para melhor, este é só o começo das dores.
A boa notícia é que a justiça poética existe: a promessa de riqueza universal do capi­ta­lismo não poderia produzir outra coisa além de miséria universal. Se parás­se­mos hoje mesmo, fechando a lojinha, dei­xa­ría­mos uma esma­ga­dora quan­ti­dade de pro­mis­só­rias não pagas para as gerações pos­te­ri­o­res. Natu­ral­mente, estamos longe de parar.
Se tudo der certo, se houver amanhã, seremos lembrados como a geração mais irres­pon­sá­vel da história, isso na história nada insig­ni­fi­cante das irres­pon­sa­bi­li­da­des humanas. Por décadas o mundo se perguntou como os alemães sob o nazismo puderam não reagir às arbi­tra­ri­e­da­des, tru­cu­lên­cias e injus­ti­ças sempre cres­cen­tes que cul­mi­na­ram no Holo­causto. Agora sabemos de primeira mão como se faz o que eles fizeram.

Paulo Brabo @SAOBRABO


http://www.baciadasalmas.com/manual-de-emergencia-do-observador-de-catastrofes/

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MANUAL DE EMER­GÊN­CIA DO OBSER­VA­DOR DE CATÁSTROFES - Paulo Brabo


A cons­pi­ra­ção contra a raça humana (2010), de Thomas Ligotti, foi recebido como o livro mais pes­si­mista de todos os tempos, tendo entre outros méritos inspirado os discursos do policial niilista da primeira temporada de True Detective. Thomas Ligotti é um escritor que me deixa otimista com relação às pos­si­bi­li­da­des da lite­ra­tura de horror; seus textos de ficção, reunidos em outros livros, são a única coisa con­tem­po­râ­nea que chegou até mim e se aproxima da vertigem que é Lovecraft.
Na qualidade de pes­si­mista, no entanto, Ligotti tem ainda muito a aprender. Comigo.
Diversas vezes tive de inter­rom­per a leitura de A cons­pi­ra­ção contra a raça humana para balançar ceri­mo­ni­al­mente a cabeça e refletir sobre o estado deplo­rá­vel do pes­si­mismo con­tem­po­râ­neo. “Então esse é o pior cenário que Ligotti consegue conceber?”, eu pensava. “A vida não faz sentido, mimimi? Púats, que amador.” A cons­pi­ra­ção é um livro curioso, mas encontro fonte mais segura de desespero e de horror naquelas contas de frases moti­va­ci­o­nais do instagram.
Como eu ia dizendo, sou o cara mais pes­si­mista que conheço. Tomando Ligotti como parâmetro, não tenho qualquer evidência de que não sou o cara mais pes­si­mista que já existiu. Como os pes­si­mis­tas genuínos (está ouvindo, Luiz Henrique), falo raramente sobre o meu pes­si­mismo – porque, natu­ral­mente, não adianta.
Se toco no assunto é porque estes são dias gloriosos para nós, obser­va­do­res de catás­tro­fes. Chegou a hora da retri­bui­ção, inclusive para nós.
É há décadas (milênios?) que pes­si­mis­tas bem infor­ma­dos (em outro tempo o ofício do pes­si­mismo era chamado de profético) vêm dizendo que a assolação estava chegando para cobrar as nossas pro­mis­só­rias e as pro­mis­só­rias que nos deixaram as gerações. Mas agora que a casa está caindo, tudo ruindo e começando tudo a carcomer, é tarefa difícil escolher para onde olhar.
Para o isento obser­va­dor de catás­tro­fes, qual cenário apo­ca­líp­tico deve ter a pre­ce­dên­cia? Devo dar con­ti­nui­dade às crônicas dos conflitos no Brasil, retomar o estado emble­má­tico da Europa ou começar a falar sobre o Estado Islâmico? Encontro quem sabe tempo para falar sobre o clima?
Século vinte, você acha que empurrar uma Guerra Mundial atrás da outra serviu para garantir a sua pre­ce­dên­cia na calçada da infâmia? A propósito, você chama aquilo de Guerra Mundial? Veja isto e aprenda.
Diante do número de per­so­na­gens e da com­ple­xi­dade dos cenários apo­ca­líp­ti­cos, mesmo o mais expe­ri­men­tado pes­si­mista pode precisar de ajuda para preencher as linhas pon­ti­lha­das e decupar os conflitos. Con­si­de­rando que este é o último espe­tá­culo da Terra, seria grave des­per­dí­cio você não saber para onde olhar. Para sua con­ve­ni­ên­cia, deito aqui um breve

Manual de emer­gên­cia do obser­va­dor de catástrofes

Crise de refu­gi­a­dos na Europa? Índios arro­cha­dos no Mato Grosso do Sul? Mercado inter­na­ci­o­nal seques­trado pela depen­dên­cia da China? Guerra no Oriente Médio entra para o Patrimô­nio da Huma­ni­dade? Crise de abas­te­ci­mento de água em São Paulo? Proposta da ONU para incluir o des­ma­ta­mento da Amazônia na lista de direitos humanos? 2015 é já o ano mais quente jamais regis­trado? Fracasso econômico da política desen­vol­vi­men­tista do PT está sendo corrigido com mais e mais acelerado desenvolvimentismo?
As veias abertas do Apo­ca­lipse são tantas e suas hemor­ra­gias tão exu­be­ran­tes que nenhuma lista será completa o bastante para guiar a atenção do obser­va­dor de catás­tro­fes. A vantagem é que, macro ou micro, a catás­trofe que o amigo pes­si­mista escolher observar estará con­ve­ni­en­te­mente submetida à mesma e didática lógica fundamental.
► 1 Você está olhando para os resul­ta­dos de uma monocultura
A história das economias locais demons­trou vez após outra que é insen­sa­tez acreditar que há esta­bi­li­dade nas mono­cul­tu­ras. Quando uma mono­cul­tura dá errado, tudo debaixo da sua esfera de influên­cia dá errado (pergunte ao ciclo da borracha, ao do café). No século 21 estamos colhendo pela primeira vez os frutos impen­sá­veis (ou, melhor dizendo, a impen­sá­vel infer­ti­li­dade) de uma mono­cul­tura global.
Em algum momento pro­ces­sual do século vinte, como resultado da invenção da ideia de país sub­de­sen­vol­vido, as culturas do globo deixaram de se acreditar sufi­ci­en­tes. Países e civi­li­za­ções inteiras tinham vivido por milênios debaixo da noção (e retro­a­ti­va­mente enten­de­mos o quanto essa noção era sub­ver­siva) de que seus modos locais de fazer e de olhar o mundo tinham legi­ti­mi­dade inerente, e vantagens inerentes sobre as soluções de outras culturas.
Todas essas pers­pec­ti­vas se deixaram esmagar pela mono­cul­tura do capi­ta­lismo global e urbano. Que o mundo inteiro esteja desejando as mesmas coisas é por si mesmo uma for­mi­dá­vel catás­trofe, mas dessa fonte bebem todas as outras.
► 2 Você está olhando para os resul­ta­dos de uma crença sem fundamento
A mes­qui­nha­ria branca foi sempre embalada por alguma sorte de crença prag­má­tica, sem qualquer cor­res­pon­dên­cia com as hesi­ta­ções e pausas da poesia. Os ingre­di­en­tes são os mesmos, mas nova é a embalagem, a ideia de promover crenças con­ve­ni­en­tes e sem fun­da­mento pelo método manhoso de chamá-las de racionais.
Os conflitos que assolam a presente iteração da Google Earth nascem das impli­ca­ções e com­pli­ca­ções de um único artigo de fé:
A crença de que os bens a que tem acesso uma minoria pri­vi­le­gi­ada podem chegar a ser possuídos pela maioria que deseja ter acesso a eles.
O obser­va­dor de catás­tro­fes vai encontrar inúmeros deleites em reler o parágrafo acima (encontrei a frase, perfeita como está, neste artigo de Pankaj Mishra ). Pode haver receita mais for­mi­dá­vel ou mais certa para o desastre? O magistral é que essa crença – de que os des­pos­suí­dos podem chegar a aquistar aquilo a que tem acesso os pri­vi­le­gi­a­dos – per­ma­ne­ce­ria sem fun­da­mento mesmo num mundo de recursos ili­mi­ta­dos, coisa que o nosso está longe de ser.
► 3 Você está olhando para os resul­ta­dos de uma evan­ge­li­za­ção universal bem sucedida
Uma boa nova não precisa ter fun­da­mento para ser pregada pelas elites e abraçada pela multidão; basta que pareça com­pa­ra­ti­va­mente boa para a maioria e se mostre de fato boa para os mais privilegiados.
A vontade de enri­que­cer foi tra­di­ci­o­nal­mente usada como com­bus­tí­vel para toda sorte de injus­ti­ças (veja-se a história da colo­ni­za­ção da África e das Américas), mas até recen­te­mente esse apelo não tinha sido arti­cu­lado em sua versão mais absur­dista. “Estamos sendo pouco ambi­ci­o­sos aqui”, disse um homem branco de gravata em alguma reunião. “Em vez de partirmos da lorota de que todos querem ficar ricos, por que não partirmos da lorota de que todos podem ficar ricos?”
Nenhuma outra pregação ou ortodoxia mostrou-se mais eficaz do que a do capi­ta­lismo/fundamentalismo de mercado, porque antes dele não tinha ocorrido a ninguém articular a singela (e dupla­mente mentirosa) ideia de que toda desi­gual­dade é justa porque ricos todos podem ficar.
A insa­tis­fa­ção das massas já foi represada com a promessa de uma eter­ni­dade de abun­dân­cia no céu; hoje em dia a mesma insa­tis­fa­ção é represada com a pos­si­bi­li­dade de momentos de riqueza na terra. Como se vê, as massas se mostram cada vez menos exigentes e mais crédulas, e a sua apa­zi­guada insa­tis­fa­ção pode ser, de maneira mais eficaz do quem em qualquer sistema anterior, cana­li­zada em favor da causa das elites.
O fun­da­men­ta­lismo de mercado é a mono­cul­tura do mundo. Por um lado, todos dentro do sistema podem ser apa­zi­gua­dos à plena submissão: Então você não quer um mundo em que qualquer um possa ficar rico, inclusive você? Sai do caminho que não é por interesse próprio, é por amor à igualdade que estou der­ru­bando essa floresta, seu comu­nis­ti­nha de merda.
Por outro, a invi­a­bi­li­dade e a popu­la­ri­dade do projeto capi­ta­lista fazem com que um enorme número de pessoas dentro do sistema conheça medidas des­fi­gu­ran­tes de frus­tra­ção pessoal. Esses decep­ci­o­na­dos com a fé podem ser facil­mente aliciados por sistemas ali­men­ta­dos pela mesma frus­tra­ção, como o Estado Islâmico (que é em muitos sentidos uma versão Apple Incor­po­ra­ted –extra focused e intei­ra­mente design-oriented – do ter­ro­rismo tradicional).
► 4 Você ainda não viu nada
Como dizia um pes­si­mista que já partiu desta para melhor, este é só o começo das dores.
A boa notícia é que a justiça poética existe: a promessa de riqueza universal do capi­ta­lismo não poderia produzir outra coisa além de miséria universal. Se parás­se­mos hoje mesmo, fechando a lojinha, dei­xa­ría­mos uma esma­ga­dora quan­ti­dade de pro­mis­só­rias não pagas para as gerações pos­te­ri­o­res. Natu­ral­mente, estamos longe de parar.
Se tudo der certo, se houver amanhã, seremos lembrados como a geração mais irres­pon­sá­vel da história, isso na história nada insig­ni­fi­cante das irres­pon­sa­bi­li­da­des humanas. Por décadas o mundo se perguntou como os alemães sob o nazismo puderam não reagir às arbi­tra­ri­e­da­des, tru­cu­lên­cias e injus­ti­ças sempre cres­cen­tes que cul­mi­na­ram no Holo­causto. Agora sabemos de primeira mão como se faz o que eles fizeram.

Paulo Brabo @SAOBRABO


http://www.baciadasalmas.com/manual-de-emergencia-do-observador-de-catastrofes/